terça-feira, 13 de setembro de 2016

Quem conta um conto

Nasceu magrinho, ligado aos tubos até ter força suficiente para poder respirar o ar que os que por cá já andavam encheram de micróbios e poluição. Depois disto contra todas as expectativas dos medicos não voltou a dormir mais num hospital. Foi a primeira finta da sua vida. A seguir, começou a driblar os adversários com mais arte. 

Cresceu e nem sequer ia sentindo o nariz a pingar nos invernos mais rigorosos. Diz ser de ter evitado todas as recomendações preocupadas da mãe que fazia de tudo para lhe amparar as quedas, e de ouvir os sermões que o pai lhe dava quando caía: "Leva o casaco, Zé Pedro."; "Lava as mãos, Zé Pedro."; "Não metas isso à boca, Zé Pedro."; "Devias ter prestado mais atenção Zé Pedro."; "Já te tinha avisado, Zé Pedro."

Os anos foram passando por Zé Pedro, e a voz preocupada da mãe ecoando nos gestos do dia a dia. Zé Pedro cresceu e os conselhos do pai tornaram-se a cartilha para a sua vida.

O miudo reguila e bom aluno que enganava todos com o olhar matreiro e o sorriso terno, tornou-se pai. E agora respira amor para ali, para aquela encubadora que tem a sua filha. Só tira os olhos da encubadora para acalmar a mulher. Está ali, como a virtude, no meio das duas a aprender a ser pai. Sorte a do Zé Pedro que teve os melhores dois exemplos do mundo.

À noite quando ninguém ouve, o ateu convicto reza as orações que se lembra de ouvir na voz calma da avó. Pede que a Maria cresça e saia dali, pede que um dia também ela ignore as preocupações da mãe e que passe os invernos sem um espirro. 

Quando a mulher acorda e lhe pergunta com quem fala não lhe conta a verdade: "Estava a falar com a Maria, não te preocupes Teresa." Dizer a Teresa que fala com alguém a quem ele não reconhece existência era motivo para a preocupar mais. E por isso na outra tarde quando ela lhe pediu que fosse à capela pedir a São Francisco, Zé Pedro barafustou indignado. Aprendeu nos negócios que às vezes a aparência é a chave do sucesso. Zé Pedro foi, pediu a São Francisco e a todos os anjos e santos. Repetiu o que a mulher lhe tinha dito, o que se lembrava de ouvir à avó e ainda negociou com Nossa Senhora de Fátima como se numa reunião estivesse: "Nós demos-lhe o teu nome. Tão depressa lho tiramos. Pelo nome e a saúde dela vou à missa uma vez por mês. Pronto, todos os domingos. Doo dinheiro todos os meses à paróquia."

A seguir a pedir sente-se sempre culpado, como se aquilo fosse desistir. É que na fé de Zé Pedro ter fé na recuperação é não ter de recorrer à fé. Vê o médico ao longe, vem de papeis na mão encontrá-lo à porta da capela. Não pensa, corre na sua direção para ouvir as suas novidades. Aprendeu no ano em que formou a sua empresa que se alguém dá notícias cara-a-cara ou são muito boas ou são muito más. Zé Pedro não quer pensar no que os negócios lhe ensinaram. Teresa está sempre a avisá-lo que na vida nem tudo é negócio, e ele sabe que a devia ouvir mais vezes. 

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