sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Quem conta um conto #2

Entrou no quarto para o acordar, fazia-o todos os dias nos últimos anos. Os afazeres profissionais faziam com que não conseguisse estar com o pai o dia inteiro. Mas desde há três anos que fazia questão de lhe dar o pequeno almoço com o primeiro beijo do dia, esforçando-se por conter a ideia de que aquele podia ser o último. Era aquela altura da vida em que há uma volta. Parecia que tinha sido ontem o dia em que o pai o acordava para o levar à escola, sempre com um beijo mesmo nos dias em que miguel não ouvia o despertador e o pai tinha que o apressar. O beijo nunca faltava.
À semelhança do que acontecia desde que o cancro no pâncreas tinha aparecido e o pai ido para casa de Miguel, entrou deu um beijo na bochecha do pai e foi abrir a janela. Os lábios sentiam cada vez mais os ossos, mas naquele dia tiveram dificuldade em sentir calor. Abriu a janela, voltou à cama. Agarrou no pulso do pai, não sentiu nada. Depositou o ouvido perto do coração, e achou que era o barulho da máquina de oxigénio que não lhe permitia ouvir o respirar do coração. Abanou o pai, chamou-o. Tentou convencer-se de que aquele não era o fim. A seguir convencia-se que tinha sido bom. Que o pai sofria e que tinha partido durante a noite, sem dar conta. Que estava agora ao pé da mamã e dos avós. Para depois voltar a chamar o nome do pai. Não podia ser aquele o fim. Como podia ser aquele o último dia da vida do pai e o sol ter nascido como se não houvesse nada de diferente? Ajoelhou-se ao pé da cama, chorou. Ficou ali até aos joelhos sucumbirem, e sentou-se com a cabeça no meio das pernas. Já não tinha lágrimas, não tinha nada. Havia dentro dele um vazio que parecia ser impossível de preencher. Toda a vida, por influência do pai, tinha sido organizado. A pessoa na linha da frente para resolver todos os problemas. Consegui afastar o drama e ser racional quando mais ninguém conhecia. Naquele momento tinha perdido a força nas pernas e um peso tinha-se instalado sobre o peito. Não sabia o que havia de fazer. Não conseguia pensar. Queria que aquele dia não tivesse amanhecido. A mulher que o esperava no carro, depois de deixar os filhos na escola, achou estranha a demora. A enfermeira que preparava os medicamentos da manhã esperava ser chamada. O tempo tinha parado para Miguel. E só quando a mulher entrou no quarto o ponteiro do relógio voltou a andar. "Não te preocupes, eu trato de tudo." Miguel conseguiu finalmente levantar-se. 

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